terça-feira, 25 de março de 2008

"Vidas do mundo..."

O Ti Joaquim gostava do Centro de Dia. Tanto, que passado algum tempo fez com que a mulher o passasse a acompanhar, mas contrariada!
Bem… passou a acompanhá-lo, porque sabia que os frequentadores do Centro de Dia, iam regularmente à praia, e a praia para a ti Maria, era o melhor que lhe podiam oferecer.
“Malditas horas que nunca mais passam.” Irrequieta, ora se sentava ora se levantava, soprava e, outras vezes, para controlar a sua insatisfação, cantava tudo o que lhe vinha à cabeça: Ave-Maria de Fátima, as canções do seu tempo, tudo! Os outros idosos começaram a chatear-se com aquele comportamento, porque queriam fazer o repouso do almoço, recostados nos sofás.
Aquilo não era vida para ela. Quando não a levavam à praia, apanhava transporte depois do almoço e ia para casa. Outras vezes ia a pé... Perguntavam-lhe “Ó ti Maria, então já vai para casa e deixou lá o seu homem sozinho?”
“O que é que eu lá estava a fazer! Renda não faço! Bem basta o tempo que gastei quando era pequena a coser sapatos para o meu paizinho, que era sapateiro. Olha aqui para estes dedos todos tortos! Foi o jeito da agulha e da linha. Como eu ainda era muito tenra ficaram assim. Ainda se tivesse lá um bocado de terra para cavar! Não tenho paciência para estar lá sentada sem fazer nada. Fico danada só de ver que estão lá mulheres muito mais novas do que eu, e que podiam tão bem trabalhar, mas não lhes apetece… Atão!... Vidas do Mundo, Senhor… vidas do mundo!”

quinta-feira, 20 de março de 2008

O Dia de Páscoa

Na Sexta-feira Santa, faziam-se os preparativos para o dia de Páscoa.
Enquanto a minha mãe preparava a massa para os folares, eu e a mana íamos ao Outeiro da Senhora buscar abróteas e junco para espalhar pelas escadas até a porta de entrada, formando uma passadeira verde natural, por onde iriam passar o Sr. padre e o sacristão no Domingo de Páscoa, aquando da visita Pascal.
Ajudava sempre a minha mãe na confecção dos bolos, partindo os ovos e provando a massa do alguidar. Era colocado um ovo cozido em cada bolo entrelaçado com duas tiras de massa, e depois levados ao forno para cozer. Depois de tirados do forno, eu pincelava-os com azeite para ficarem mais brilhantes.
Chegado o domingo, íamos todos à missa.
Depois do almoço, sempre bem avantajado neste dia, com todo o tipo de guloseimas, vinha o compasso, avisado pela sineta. Era o momento mais difícil para mim. A opa vermelha, a cruz de metal prateado com os seus bicos, o ajoelhar na casa de fora em redor da mesa de centro, o beijar aquela cruz dada pelo padre, fria como gelo, eu mal sabia o significado de tudo aquilo… Em contrapartida, neste dia gostava de estrear roupas novas e uns sapatos. Depois de um ou dois minutos de conversa retiravam-se para correr outras casas. Lembro-me que o sacristão (pai da ti Maria) carregava com a carga das laranjas às costas, resmungando, porque nem todas as pessoas davam dinheiro.
Depois disso já podia ir a casa dos meus padrinhos buscar o folar. A minha mãe carregava-me com uma bolsa às costas com bolos, enfiada numa cana, e depois de algum tempo comendo e bebendo com os padrinhos, regressava a minha casa com outra sacada de bolos e alguns pacotes de amêndoas.

Folar da Páscoa
(Faça você mesmo)

Ingredientes:
1 Kg de farinha
250 g de manteiga ou margarina
35 g de fermento de padeiro
100 g de açúcar
3 ovos
5 dl de leite
Sal
1 colher de (café) de erva - doce
1 colher de (chá) de canela

Dissolva o fermento num pouco de leite morno e, com 200g de farinha, faça uma massa. Deixe-a levedar.
Entretanto, trabalhe a restante farinha com os ovos, o açúcar e o leite, até obter uma massa muito leve, bem enfolada, mas com bastante corpo. Adicione depois a margarina, sal, a erva-doce e a canela.
Trabalhe bem a massa e, por fim, junte-lhe o fermento que esteve a levedar. Amasse até a massa se desprender das mãos e do alguidar.
Cubra com um pano e deixe levedar durante 2 a 5 horas em local aquecido.
Decorrido esse tempo, divida a massa em bolas e achate-as. Sobre cada uma coloque 1 ou mais ovos com algumas tiras de massa.
Pincele com gema de ovo e coza em forno quente.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Incapacidades temporárias

Depois de se reformar, o ti Joaquim costumava ir até à fábrica do filho mais velho, a quem passara o ofício de marceneiro, para ainda fazer uns pequenos biscates e observar o modo de trabalho dos empregados. Tinha uma boa relação com eles. Estes gostavam de o arreliar e de lhe ouvir as histórias.
O Ti Joaquim dizia-lhes sempre: “Ó rapazes, vocês agora nem sabem o que é trabalhar. No meu tempo fazia-se tudo à mão, isso é que era obra de artista! Agora, vocês com essas máquinas todas!....”
Conta o ti Joaquim que, lá à fábrica, costumam recorrer pessoas a pedir trabalho.
Certa vez, na época alta, o filho do ti Joaquim aceitou o pedido de um homem, ainda novo. Expondo-lhe todas as condições de trabalho, disse-lhe que podia começar já no dia seguinte. “Começa às oito horas da manhã e termina às cinco da tarde.”
O novo empregado depois, agradecido e um tanto envergonhado, contou-lhe que tinha sido caçador e que lhe acontecera um acidente que lhe causara a perda dos testículos.
O patrão condoeu-se com o sucedido e disse-lhe então que, nesse caso, viesse só às nove que ainda vinha a tempo. Este, admirado, perguntou-lhe porquê, ao que o patrão respondeu “Pode vir só às nove, porque os meus empregados das oito às nove não fazem mais nada se não coçar os tomates”.

domingo, 16 de março de 2008

Uma grande mulher

Ainda há dias pediu a um filho que lhe comprasse adubo e uns quilos de batatas para semear, para se ir entretendo a cultivar no quintal.
Disse que lhe faria bem às dores de costas. Acredito, mas tem o homem que lhe dá bastante que fazer. Os seus noventa e quatro anos pesam-lhe e está a ficar muito dependente.
A partir dos noventa que deixou de conduzir o seu automóvel, foi uma desgraça, vê-se a piorar de dia para dia, o que o leva a tomar muitos medicamentos. Ela porém zanga-se sempre que está na hora da toma, e porque ele tem que tomar vários medicamentos ao dia, fica impaciente porque, para ela, os remédios deviam curar, “É para isso que se gasta o dinheiro. Oh meu Deus! É todo o dia encharcado em remédio para não valer de nada! Oh homem, se eu fosse a ti, não tomava mais nada! A gente sempre tem que morrer"!
Fala assim porque tem sido uma mulher rija, apenas toma um comprimido todas as manhãs para a tensão, quanto ao resto, as últimas análises que fez, já lá vão mais de meia dúzia de anos, estavam dentro dos parâmetros normais para a idade.
Só se lembra de ir ao hospital há anos com uma forte dor de cabeça e de ir ao médico por causa das vistas. O médico recomendou-lhe apenas para lavar os olhos com água fervida todas as noites antes de deitar, medicina esta que se mantém sem esquecimento todos os dias.
Não come bife ou febras porque os dentes já não ajudam, apenas come a carne branca que é mais tenra e fácil de mastigar. Gosta de cozinhar à sua maneira e de cozer a broa.
Já para o Ti Joaquim as refeições são à base de dieta.
E agora pergunto eu:
- Como se chega aos noventa e um anos assim com toda esta genica? E onde pára o colesterol?
Será pela agricultura biológica que utiliza, onde apenas emprega cinzas, estrumes e… a pinguita de vinho morangueiro proveniente duma única cepa que lhe dá para todo o ano? Será que é isso que contribuirá para a sua longevidade, mesmo sabendo nós agora que este é um vinho que contém agentes tóxicos?
Ah!... Ainda há dias foi à Caixa levantar a sua pensão e, não é que se chateou com o novo funcionário por este colocar a almofada do carimbo em cima do balcão!
"Vá, dê cá o dedo!" Ela admirada, falou sem meias medidas "Você não deve estar bum da cabeça! Para que é isso? Então eu todas as vezes que aqui venho não é preciso nada disso! E hoje é porquê? Dê-me cá mas é a caneta para eu assinar!"
O funcionário corou…

terça-feira, 11 de março de 2008

Marmelada...

Durante a vida de lojista do ti Joaquim, as pessoas ao redor aviavam-se na sua loja, comprando o necessário para o dia-a-dia - cloreto, fósforos, petróleo, colorau - e era ali que os homens se juntavam aos domingos para umas cartadas e beberem uns copos.
Perguntei-lhe se fora um comerciante recto, honesto, ao que me respondeu que sim.
De vez em quando lá cometia uma ou outra falta, mas sem gravidade, não devia, mas a tentação!...
"Nunca fui como o de lá de baixo, o Alberto" (um seu concorrente). "Quando alguém lhe comprava bacalhau, cortava-o na guilhotina, mas com a gaveta meio aberta, e fazia deslizar, sem que o freguês visse, uma das postas do meio para dentro da gaveta".
“Arranjava sempre para uma refeição... Isso nunca fiz!"
"Cheguei a fazer uma outra coisa, uma pequena maroteira":
Havia a ti Angelina, que quando vinha à loja, gostava sempre de estender o seu braço e, sem que eu visse, tirava um bocado de marmelada para depois em cima beber o seu copito da aguardente. Mas uma vez quilhei-a!
Arranjei um tabuleiro igual ao da marmelada e meti-lhe dentro massa consistente*. Ela vinha sempre à mesma hora. Quando cheguei ao balcão estava ela a lamber os beiços. Pediu o habitual, pagou e foi -se embora. Não se desmanchou, mas saiu com a garganta bem untada.
De regresso a casa ia sempre a fazer “art ffff arrrtefff arretefffe".
Alguém ao vê-la assim tão atrapalhada e sufocada perguntou-lhe, se estava mal disposta, ou se precisava de ajuda, ao que esta lhe respondeu:
- Não queiras tu lá saber! O ti Joaquim tem agora lá na loja uma marmelada que sabe mesmo à... arrrtfe... (Massa Para os Eixos dos Carros de Bois)

Ia-me escangalhando a rir!...

sexta-feira, 7 de março de 2008

Na Escola

Na escola primária depois de fazermos a correcção dos trabalhos de casa - “os deveres” - cópia, redacção, contas, chegava a hora do almoço.
Sentávamo–nos recostados no muro do pátio de recreio e abríamos o cesto.

Um dia apareceu-nos um mendigo à entrada do recreio. Ficou estacado e não tirava os olhos de cima de nós. Era um olhar que parecia dizer: "tenho fome, dai-me de comer".
Era um pobre homem meu conhecido, o ti Manel Maria, homem educado, de poucas falas, que vivia um mundo diferente.
Como não tirava os olhos de cima de nós, puxei de um bocado de broa e pondo-lhe uma posta de bacalhau assado besuntado em azeite e alho, dei-lho. Comeu com regalo.
Não tinha como agradecer a oferta, mas pegando na sua guitarra portuguesa, já escura pelo tempo, que sempre o acompanhava, começou a dedilhar as cordas com os dedos acastanhados pelo fumo abusivo dos cigarros. Deixámos de comer para ouvir aquela cantiga que nós, miúdos, conhecíamos dele e que tanto gostávamos de ouvir. Era composta de quadras que alimentavam a nossa fantasia, das quais apenas me recordo de uma pequena frase, aquela que me ficou no ouvido.
“Uma pulga a catar chatos na careca d' um piolho”.

Comíamos à pressa para aproveitar o tempo mais esperado da escola e o que passava mais rápido, a brincadeira. Raparigas para um lado, rapazes para o outro. Não havia misturas. Nós, rapazes, brincávamos ao pião, cabra-cega, bandeira e bela-mura.
Era ao pião que mais gostávamos de brincar. Fazíamos os próprios bicos afiados, "garças", para que a bicada certa marcasse bem o do adversário. Na bela-mura, o salto para cima das costas dos jogadores acompanhava-se com uma lengalenga "Uma da bela-mura, duas pernas cruas, três landês ,quatro sapato ,cinco brinco, seis reis, sete canivete, oito biscoito, dez pés".

As meninas, como eram mais sossegadas, jogavam ao lencinho...