sábado, 26 de abril de 2008

Acontecimento marcante


Brincávamos na hora do recreio, numa segunda-feira de manhã. Era dia de mercado.
A sirene dos bombeiros, no cimo da torre da igreja, fazia um barulho ensurdecedor porque ficava a uma escassa centena de metros do Externato. Os mais entendidos logo disseram:
- É acidente dentro da vila!
Os alunos mais velhos, porque tinham autorização dos pais, saíram a correr movidos pela curiosidade, em direcção ao centro da vila.
Passado algum tempo, já no final do recreio, o meu espanto quando vi dois homens passar na estrada contígua ao recreio munidos de uma padiola, na qual transportavam algo coberto com um pano de cor escura, talvez um cobertor. Pelo braço dependurado que baloiçava ao compasso dos dois, pude ver que era o corpo de um homem. Iam em direcção ao campo-santo que ficava a curta distância da escola.
Os colegas trouxeram a notícia.
Foi um homem e uma mulher de Santo-Egídio que morreram esmagados pelos taipais de uma camioneta da pedra, na rua estreita.
A passagem das camionetas era constante. Vindas da serra, carregadas de pedra para a estação da CP, onde enchiam vagons para os reparos e construção da linha.

Maldita rua que teimava em ceifar vidas!
Rua estreita feita em calçada de granito com inclinação, única via de passagem na altura para todo o tipo de veículos.
Um condutor subindo com a camioneta carregada, para não perder a velocidade, não avisou os dois transeuntes que se haviam refugiado cada qual na sua ombreira das portas fechadas de um edifício.
Hoje ainda são visíveis as ranhuras nas paredes, causadas pelo roçar dos taipais das camionetas de carga.

Vim a saber mais tarde que os dois eram os meus avós paternos.
O meu avô... partiu, e a minha avó, politraumatizada, foi transportada aos HUC, onde permaneceu vários meses internada em risco de vida.
Depois deste mortal acidente não houve qualquer responsabilidade da parte do camionista, ou da empresa para quem trabalhava.
O tribunal foi mais a favor da empresa, porque as suas testemunhas representaram melhor papel. Estávamos no tempo em que alguns tinham o poder de “comprar” quem quer que fosse - Tribunais, GNRs ou testemunhas oculares.

Os infelizes sofredores herdeiros, tiveram que vender património para pagar os custos com o funeral e o internamento hospitalar.

Lá se foi a choupana na serra!

13 comentários:

Tiago R Cardoso disse...

Para começar, boa pintura, sim senhor muito bom, para alem de escreveres bem, bons desenhos.

Mais um bom conto, infelizmente hoje em dia esse mesmo poder de comprar tudo continua por ai, mais disfarçado, mas se calhar ainda mais forte.

Auréola Branca disse...

Minha nossa! Quanta injustiça, não? A vida de algumas pessoas, tirada assim, sem ao menos uma responsabilidade?
Permita-me comentar, estes dias, aqui no Brasil, houve um acidente que matou três pessoas, em uma das estradas. O motorista visivelmente embriagado, não tinha consciência do que fez. Entregou-se a polícia (ao menos) no dia seguinte, chorando. Mas, certamente, ele não terá o castigo equiparado a dor dos familiares da vítima. Infelizmente, aqui no Brasil, há um excesso de proteção para os errados.
Ops... desculpe-me. Empolguei-me com seu texto e escrevi tantas linhas. É que ando cansada de tanta impunidade.
Até mais.

Anónimo disse...

Impressionante Jo, presumo que o que acabas-te de narrar tivesse acontecido à muitos anos atrás, mas para ti não deixou de ser marcante para toda a vida.
Infelizmente desenrolares de situações idênticas a essa é comum nos nossos dias.

Julio Rodrigues disse...

Muito interessante a narrativa, ainda que bem triste.
Gostei muito da pintura, espero ver mais destes multiplos talentos!

São disse...

Infelizmente, a Justiça ainda se encontra à venda!!

Feliz semana.

Lady disse...

Oi!
Vim deixar-te um beijinho...

Lamento muito...

Um acaso dia li um artigo, que comentava que existia duas justiças... uma para os pobres, outras para os ricos...

Onde eu vivo ainda se contam as mortes na linha!!!
Mas neste caso, os únicos culpados são mesmo as vitímas!

Jinhos

Luna disse...

Ainda hoje quem tem dinheiro, dá a volta a muitas questões, pena que as vidas, o sofrimento, estejam incluídas , para uma crinaça esses acontecimentos ficam marcados

Gostei muito da pintura
Bj

Isamar disse...

Infelizmente o Senhor dinheiro tudo comanda.Onde estão a justiça, o pão, o trabalho, a saúde para todos?

Continuemos a lutar por esse Abril que desejamos mais justo e mais igualitário.

Beijinhos

Mara disse...

Há coisas que infelizmente pouco mudam...
Excelente narrativa.
Cumprimentos.

Isamar disse...

Fosse a choupana na serra e tivessem ficado os teus avós que tudo se resolveria. Seria um desgosto muito grande para eles mas pior do que isso foi a partida do teu avô. E a justiça é de bradar aos céus.

Beijinhossss

p.s. Tenho o meu blogue em reparações mas voltarei em breve. Avisar-te-ei através de email.

Carla disse...

demasiado triste, demasiado real
deixo-te um beijo e o obrigada pela partilha

luar perdido disse...

Pena que ainda hoje o dinheiro continue a comprar o que não deve, deixando impune quem deveria assumir responsabilidades...É a realidade que temos, mas que não devemos calar.

Parabens pela pintura! Surpreendeste-me, para além do dom da escrita temos um mestre na tela.Muito mesmo muito bonito.
Beijinho imenso.

Filoxera disse...

Que tristeza! E que injustiça!
Parabéns pela pintura; está linda.
Beijos.